sexta-feira, 28 de março de 2008

A andorinha

Quando abri a porta do quarto ele estava lá, voando em círculos interligados desenhando nos meus olhos o símbolo do infinito. Quase se chocava nas paredes e no teto com o pé direito baixo. Num primeiro impulso fechei a porta e me detive no lado de fora com o mesmo frenesi de quando assisti “Os pássaros” de Hitchcock... mas era apenas uma andorinha que, distraída, entrou pela fresta de alguma telha e mergulhou no que para ela deveria ser um labirinto. Procurava uma saída. Eu também. O que fazer com uma andorinha voando pela casa? O que fazer com um pássaro se esbaqueando dentro de casa? Lembrei-me do poema de Gullar. Mas não me via à beira da loucura, pelo menos eu não. Pensei nas vésperas, todo dia é véspera. O amanhã, na verdade, nunca acontece até o dia em que acontece, e então: a saída. Todo dia pode ser a véspera. Isso muitas vezes me esbaqueia por dentro e me aprisiona em labirintos estreitos com tetos baixos. O que me resgata são as asas da poesia rompendo esse teto. A andorinha. Eu precisava encontrar uma maneira de entrar no quarto sem que ela se atirasse pela porta se embrenhando pela casa. Ela precisava era do céu, não de outros labirintos. Abri de novo a porta, dessa vez bem devagar, não queria que ela se espantasse comigo da mesma forma com que eu me espantei com ela. Labirintos. Ela estava pousada no alisar acima da janela, a janela fechada e as asas na iminente fuga. Ainda com o frenesi dos pássaros me aproximei lentamente, como se pisasse acima, um pouco mais acima, como se eu pisasse em nuvens, e eu me sentia à superfície do meu corpo, leve como se eu levitasse. Ela não se movia. Por um momento tive a pretensão de pensar que havia conquistado a sua confiança e senti vontade de tê-la nas mãos, mas se isso tivesse acontecido ela viria pousar na minha mão que estava estendida entre ela e a vidraça. Escolhi a vidraça. Abri a janela e no mesmo instante ela se foi. Passou rente aos meus olhos e mal pude perceber o sopro das suas asas. Debruçada no peitoril eu procurava por ela, mas nada via além do céu azul de uma manhã de véspera. Saí da janela e voltei pro quarto. Fui escrever poesia.

(imagem da internet)

segunda-feira, 24 de março de 2008

Suspensos










Foi no tempo em que tudo era suspenso
samambaias, lustres, os móbiles no quarto
os avós no retrato, espiral no incenso...
no tempo em que se bordava
espelhinhos nos vestidos, bolsinhas atravessadas
correntinhas, anéis de prata, o tempo odara
que viajava no trem das cores
no som da flauta doce, bambu, Bambuí
pirâmides de cristal, pedras de rio, Saí...
num tempo que ficou por aí
pelos caracóis dos cabelos, pelas conchas
mar de ilha, nas flores, no tom maravilha
por baixo dos pelos das axilas
das meninas extrovertidas...
pelas penas de pavão de Krishna, num brinco
nas argolas, nas tranças de um cinto
solas de borracha, couro cru, no homem nu
que correu pela cidade descalço, sem sandálias
no tempo das dálias no teatro, cena muda
o grito nas praças, esquinas, nas ruas
as casas fechadas, as pedras, vidraças... fumaça.
Um tempo que ficou pelas cartas do Henfil
pelas mãos de todas as mães
de maio, de agosto, de abril...
o tempo da sanha, da cana, sacana, façanha
e alguns até hoje ninguém nunca viu.
Um tempo suspenso sem documento
sem lenço pras lágrimas das Eunices
Angélicas, Marias na certa mania
de ter fé na vida, na força, na raça
no fio das alegorias, nas penas das asas caídas
dos anjos suspensos bordados no tempo
em estado de graça...

imagem: "croquis dos anjos - Zuzu Angel" (extraída da internet)

quarta-feira, 19 de março de 2008

No casarão (...um rangido do tempo)

A escada de madeira exalava um perfume de amêndoa doce e os degraus rangiam. Subíamos e descíamos acelerados.
Estou subindo agora e entrando no corredor dos quartos, uma galeria com paredes brancas e portas escuras. Aqui não podemos correr, não podemos falar alto, guardamos o riso, o choro e o grito. Entro no quarto que tem cheiro de água na moringa. É fresco e úmido como a própria moringa, é simples como o cobertor cinza e áspero que se torna macio quando estendido sobre o lençol branco de algodão, silencioso como o criado mudo velando a cama junto à parede.
Abro a janela e tudo é colorido. Os canteiros de flores e as costelas de adão estão lá, como sempre estiveram, assim como o chão de terra batida e o horizonte com o trem contornando a curva da montanha. Escuto os risos, os choros e os gritos, e todos correm para a estação de chegada e partida.
Deixo o quarto e de novo no corredor volto os olhos pro final da galeria, de lá vem o eco dos azulejos, dos últimos pingos do chuveiro.
Desço as escadas, desacelerada, e range o tempo.
No vestíbulo me encontro com ele, estático e eterno, me deparo com ele guardando tudo por dentro, o meu primeiro abrigo na sua moldura oval: o espelho de corpo inteiro.
Por ele vejo as mães passando com os cabelos presos, tornozelos à mostra, e os filhos chamando por elas. Os filhos sempre chamam por elas quando as vêem passar.
Vejo os balões de festa que estouram nas mãos dos meninos e das meninas que deslizam na água da fruta madura com o gosto do tamarindo salivando a vida. Escuto a ciranda das vozes entardecidas.
Meus olhos salivam a imagem que vejo, meu corpo inteiro não cabe mais nele, no meu primeiro espelho por onde um dia atravessei e perdi o caminho de volta. Mas num chamado do tempo me encontro em meio aos que correm atendendo ao apito do trem com sua fumaça desenhando rolos de música e vento.
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segunda-feira, 17 de março de 2008

Talvez

Talvez eu não tenha aprendido a respirar bem fundo esse ar que pressiona o teu mundo, que colore o teu céu de uma só nuance, tão escuro que o sol nem tem chance de clarear teu cabelo que cresce, enquanto ferve na minha cabeça tantas idéias prá tentar assimilar as tuas...
Talvez eu não tenha tido a postura correta, a coluna ereta, essa minha mania de olhar pro chão, tropeçando nas pedras da tua rua, pulando poças com tão pouca chuva, teu tempo ameaça e nunca estilhaça... é tão certa a tua meteorologia que fico sem graça das minhas intempéries, das minhas luas em pleno dia...
Talvez eu não tenha encarado de frente a tua face, teu olhar de sobreaviso, tuas fases sempre tão sérias e eu sempre pensando no teu menino que brinca comigo, joga conversa fora, que ri fora de hora mas logo se esconde... e eu fico procurando onde.
Talvez tenha se perdido em alguma curva, alguma esquina... talvez esteja esquecido em algum verso, alguma rima... talvez tenha mudado de endereço, de roupa, de rosto...
Talvez eu não tenha aprendido a desvendar teus mistérios, tuas senhas, enigmas, esses jogos tão teus...
Talvez não tenhas aprendido a desvendar os meus....

(imagem extraída da internet)

quarta-feira, 12 de março de 2008

Um quadro em Santa Tereza

Durante as aulas de desenho artístico, no curso de Arquitetura da Fau, visitamos vários locais aprazíveis na cidade do Rio de Janeiro para exercitarmos o desenho livre sob a orientação do professor Leitão. Entre esses locais o Passeio Público, Largo do Boticário, Urca, Aterro do Flamengo, por exemplo. Mas foi em Santa Tereza que eu vi o quadro com o rosto de um velho pintado a óleo.
Depois da aula, ao ar livre, em que desenhamos ladeiras e fachadas de casarões antigos, fui com alguns colegas caminhar pelas ruas estreitas com trilhos de bonde. Havia um casarão aberto à visitação, entramos. Logo uma escada de madeira, no salão com pé direito alto, me chamou atenção pela beleza e altivez da forma. O interior era sombrio, nas janelas – como vitrais – alguns vidros quebrados faziam com que a luz entrasse tímida e curiosa – como eu. Parada, entre as sombras, eu percorri com os olhos cada canto daquele salão que um dia foi habitado por alguma família e que agora estava vazio, mas cheio de histórias guardadas na mudez das paredes, no gemido da madeira lamentando o passado. Segui o caminho do meu pensamento e dei com os olhos no quadro, estava no alto da escada e era como se observasse a tudo e a todos. Parei ali. O rosto do velho pintado a óleo com perfeição de traços, expressão, luz e sombra. Não vi mais nada porque aquela imagem tapou meus olhos. Voltei para casa e a visão do quadro não me saía da cabeça. Ficava pensando quem seria o autor daquele retrato e de quem seria aquele rosto aprisionado numa expressão eternizada na perfeição dos traços. Algum tempo depois vi, na capa de uma revista, uma foto com o rosto de um velho, não era o mesmo, mas prá mim era ele. Peguei lápis e papel e desenhei, no meu jeito, o que vi e o que via. Guardei o desenho e apaguei o quadro da minha mente.
Por esses dias resolvi arrumar minhas gavetas e encontrei o desenho. A lembrança do quadro surgiu de repente. Percebi, então, que alguma coisa restara entre os traços que fiz. Não me lembro mais do semblante que havia no retrato, mas me lembro bem da força que havia nele. Desde esse dia essa lembrança insiste.
Algumas coisas não saem da minha cabeça. Por mais que eu tente apagá-las elas ficam ali, meio que adormecidas até que surgem de repente, numa lufada do vento ou mesmo no morno do nada, e se apoderam novamente de todo o espaço. Preciso, então, me libertar delas, uma por uma, e uma das maneiras é escrevendo, e como se fosse possível libertá-las... escrevo.

imagem: desenho de Cristina Nunes

terça-feira, 11 de março de 2008

Flor da solidão


Como se tivesse uma obrigação com a vida acordava aos poucos e tomava conhecimento do dia conforme abria as janelas da casa. O céu exibia algumas nuvens, e via tantos rostos, sorrisos e olhos gigantes, brancos, bizarros, mas o vento alto as desmanchava e perdia-se a criação, a mesma forma repetida no contorno da sua imaginação. Mais um dia quieto, e quanto mais quieto o dia, mais inquieta ficava. Seu corpo franzia estalando na língua o tédio, provocando o silêncio cristalizado nas paredes mudas de uma casa vazia, e tão vazia estava que aceitava sem perceber tudo que à sua volta crescia. Sobrava tempo e solidão, uma solidão que enchia seus olhos, suas mãos, seu colo capaz de aconchegar um sentimento largo. Crescia o eco da mudez a lhe acenar as sombras... ela se confundia. Por onde andara que agora tão perdida não sabia como encontrar o ponto de espera, em algum lugar deixara essa marca, essa deixa, em algum ponto havia a ponta de um grito que esperava por ela. No começo da sua solidão dançava com suas sombras e se projetava nelas, multiplicada nas suas formas a leveza do seu corpo leve, suave no verso e reverso da pétala... era a flor. Uma flor que cresceu em seu canto cada vez mais mudo perdido em raízes a trincar paredes. Queria ouvir sua própria voz, mas faltavam palavras, faltava motivo, queria emoção, inventava um medo e faltava o sentido, não tinha medo da solidão. Por isso esperava que a noite trouxesse o seu choro solitário, um choro inútil e desperdiçado porque ninguém via o quanto era bonita chorando, ninguém sabia que sua lágrima tinha gosto de flor mordida, que sua face ruborizava em pensamentos tolos, frementes e tão necessários...
imagem: desenho de Cristina Nunes

segunda-feira, 10 de março de 2008

Coisas que vi


Vi outonos nos olhos de um cão
os lábios num risco de faca
um andarilho nos ventos da solidão
deixando na areia a sua marca...
Vi mulheres adejando
em meio a lençóis brancos
matriarcas se pondo ao tempo
outras se rastejando...
Vi donzelas suspirando
no veneno da madrugada
em volta de um corpo afogado
os sinais da morte anunciada...
Vi borboletas pousando
em vestidos com flor de algodão
senti o cheiro da goiaba
impregnado em minha mão...
Vi poesia em grãos de poeira
ouvi lamentos perdidos no mar
adormeci como Delgadina
com o amor a me soprar...

... as histórias do Gabo, que é sempre bom recordar.
imagem: desenho de Carybé

domingo, 9 de março de 2008

Um livro chamado Criatividades

Era um livro meio caderno, um caderno meio livro, era feito de páginas que se alternavam entre poemas e folhas em branco. Na direita os poemas nas páginas coloridas, na esquerda as páginas brancas. Era feito de estímulos, provocava e intimidava. Como diria Adélia Prado: espicaçava. O título: Criatividades. O objetivo era esse mesmo, cutucar a criatividade dos alunos. Não me recordo em que série eu estava quando nas aulas de literatura o conheci, mas me recordo bem do que senti ao ler “Poema em linha reta”. Foi como se eu derrapasse e enquanto lia nada mais em volta acontecia. Parei na folha ao lado, em branco, extasiada. Por essa época eu já estava seduzida pela poesia de Vinícius, lia suas crônicas e ouvia muita música. Os amigos curtiam Led Zeppelin, Bob Dylan e Janis Joplin enquanto eu ouvia... “Paris outono de 73, estou no nosso bar mais uma vez...” em que bar eu estava? Em que ano eu estava? Pelo 73 suponho que por volta dos 74, nos meus 16, 17 anos. Acho que foi quando comecei a escrever alguma coisa. À princípio transcrevia para o branco das páginas os poemas e as letras de Vinícius: “...São demais os perigos desta vida... principalmente quando uma lua chega de repente...”. A lua. Eu, que já olhava prá ela, passei a encará-la com olhares de espelho. Arriscava, então, meus versos à lápis tímida comigo mesma e, envergonhada com o que escrevia, apagava. Mas Criatividades exigia alguma coisa dos alunos e, para não deixar pistas, eu desenhava por cima das marcas do que não sei se era poesia. O ano letivo terminou com o livro todo marcado por rabiscos. Passei a escrever em papéis soltos que eu guardava, bem dobrados, numa caixa de sabonetes que eu mantinha escondida no armário. Não sei o que aconteceu com o livro, provavelmente se perdeu nas tantas mudanças de casa, mas a caixa de sabonetes, na primeira oportunidade, joguei fora com tudo dentro. E nessas tantas mudanças acabei me perdendo, e perdendo também o costume de encarar a lua, porém nunca deixei de encarar o espelho procurando por ela. Até o dia em que, anos depois, me vi com aquele livro velho, sem capa e com as páginas espessas. Era um livro de poemas de Fernando Pessoa, na pessoa de Álvaro de Campos, que minha irmã havia esquecido comigo numa das suas mudanças. De novo derrapei no poema em linha reta e parei na porta de uma tabacaria, extasiada imaginando o céu de Lisboa. Uma lua surgiu de repente quando Criatividades emergiu na lembrança me espicaçando. Voltei a escrever e, apesar dos perigos, nunca mais apaguei nem um traço.

À mão livre

Livre
as mãos desenhando esse traço
caminho contínuo
na perspectiva o destino
no horizonte
um ponto invisível no espaço.
Na linha da vida
a arte que faço
nos olhos o ponto de fuga
as mãos buscando o sentido
no leve tremor
que faz o traço
mais bonito...