quarta-feira, 5 de maio de 2010

Black Bird


por causa do enredo
da teia
do fio
do enlace
do medo

...deixei que saltasses sobre mim e abracei meu corpo tentando conter essa loucura que de tão líquida escorria em gotas e antes que tocassem o chão evaporavam no ar vagalumeando solidões em meio à noite que derramava dos nossos olhos. Com as garras do abraço feri minha pele prá não ferir a tua. Deixei que morresse em mim a tua presença e preservei teus contornos, a tua sombra, teu cheiro-gosto de terra molhada, a luz fraca por onde a loucura tecia o silêncio com o meu gesto ao te ver pássaro negro cruzando a noite que havia entre nós, prá longe do meu domínio, das minhas auras, dos meus instintos, da minha alquimia...
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(imagem da internet)
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Um gato e um girassol


Aos vinte anos
olhei meu pai com outros olhos
percebi que as mães têm perfume
que suas mãos tecem a calma
e com ela vestem a alma...
não ouvi um tango
não escrevi poesia
enquanto a chuva caía
pela sombra eu vi o sol...
no meu quarto alaranjado
pintei um gato branco
e ao seu lado
um girassol.
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(imagem da internet)
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sábado, 10 de outubro de 2009

Crônica de um dia quebrado


Furar a onda do dia, chegar do lado de lá com os olhos vermelhos. Escutar as promessas e rir de si mesmo prá depois chorar um pouco, escondido atrás de um espelho.
Pintar as paredes do quarto, colar estrelas no teto falso e esperar pela noite.
Comprar duas caixas de morango, uma para comer, outra para mofar na geladeira.
Comprar uva sem caroço prá comer sem pensar, prá comer sem parar.
Não parar prá não ter que pensar. Não pensar prá não se engasgar com o pensamento.
Abrir as janelas prá renovar o ar. Olhar a água borbulhar antes de tomar a vitamina C. Jogar a cabeça prá baixo e esperar que o sangue venha salvar. Esperar a face corar, o sinal abrir e atravessar a rua como quem atravessa um deserto. Lembrar um pouco da areia, lembrar do que não quer esquecer, esquecer do que não quer mais lembrar.
Comprar naftalina, comprar geléia de tangerina, comprar balas prá colorir os potes de vidro, prá colorir a casa, prá não ter que se colorir.
Preparar a refeição mais lenta, passar horas refogando o tempo, depois tomar chá com pastilha de menta, ligar o som e ouvir música prá não ter que ouvir nada.
Deixar o telefone tocar e se alongar, se alongar, se alongar.
Jogar fora as coisas quebradas, guardar um caco de cada prá quando quiser se cortar.
Comprar merthiolate, novalgina, dorilax. Se preparar prá quando a dor chegar.
Esquecer um pouco mais, chorar um pouco mais.
Lembrar de comprar tomate e manjericão prá por na salada e esperar, esperar, esperar.
Se deixar influenciar, se permitir errar. Escrever por linhas tortas, separar cada ló-gi-ca, ra-zão, pro-ce-di-men-to.
Exercitar o músculo coração. Amar sem pedir licença, sem férias nem recompensa.

imagem: desenho de Cristina Nunes
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terça-feira, 9 de junho de 2009

A hora da novela


Passando as mãos pelos quadris ela estica um pouco o pano. A cabeça inclinada pro lado e três passos prá trás. Acho que ficou bom. Não. Não ficou bom. Frente ao espelho nunca nada está, satisfatoriamente, bom. Se ao menos estivesse chovendo. Uma capa de chuva a deixaria elegante. Européia!
Lembrou do avião que atravessou o céu rasgando o silêncio da tarde. A essa hora já deve ter pousado em seu destino os vários destinos. Vontade de dizer que contigo iria prá Hungria, Nova Zelândia, Papua Guiné. Prá qualquer lugar e depois voltar um pouco mais tua, um pouco mais meu, ou quem sabe com um pouco de nós... Sonhar é bom, mas causa muita confusão nos espelhos de corpo inteiro.
O vestido não caiu bem, falta carne aqui, falta tecido ali e esse calor é um inferno. Procura outro mais solto, e entre um vestido e outro se vê nua num quarto com as janelas abertas. Será que ele me vê? Pois que veja e justifique esse corpo resistindo entre um vestido e outro. Até inventa um olhar fingidor num véu com transparências noturnas. Se ele a visse, ela não estaria com os olhos fechados prá se ver mais bonita, os lábios se movendo revirando palavras soltas como asas de borboleta. Ela estaria com os olhos bem abertos ansiosos em ver tua boca curiosa. Talvez te falasse coisas que quando ditas em determinados momentos se tornam especiais. Mas nem tudo ela diz, guarda sempre algo prá depois, deixando no ar um ponto de espera. Por isso esse ar tão denso, esse sorriso rápido. Quem quiser vê-la sorrindo tem que estar atento. Será que ele está atento? Será que vê a carne branca onde o sol não alcança? Será que percebe que assim viajante ela fica mais bonita?
Abre os olhos e o que reflete no espelho vai além da pele, dos pelos, dos poros.
Ela finge que se entende, finge que segura as pontas, mas quando as solta ela sobe e sobe e sobe e então...
Uma trovoada arrasta o céu prá longe.
Desiste dos vestidos e veste a camisola de algodão. Na janela confere o tempo, parece que vai chover. Deitada na cama liga a televisão prá assistir a novela. A capa de chuva deixaria atraente a pele nua. Mas o calor está mesmo o inferno. Quantas borboletas engoli? A tua boca deve ter gosto de Amaretto. Se ao menos sonhasse contigo. Papua Guiné fica onde mesmo? ...
No alto da noite um avião risca no céu outros destinos.

imagem: desenho de Cristina Nunes
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domingo, 1 de março de 2009

Lembrança

Gosto de brincar com a tua lembrança, afinal de contas foi contigo que aprendi que a noite é uma criança que gosta de fantasia, de fechar os olhos prá se sentir invisível, de inventar histórias onde ela é a protagonista.
Gosto de cutucar esse corpo prá ver se ainda vive, se ainda assovia a nossa melodia, a mesma melodia que fez da nossa ciranda a roda gigante que nos deixava no topo de um mundo onde o ar tinha um perfume de sândalo e serenata. A nossa atmosfera lúdica onde os olhos da lua lacrimejavam de sono piscando sonhos cobertos de nuvens, e era aí que deixávamos nossas pegadas, nossos passos ritmados. Conjugados na cumplicidade tocávamos o céu que nos protegia. E a gente não via o tempo passar, a gente não sentia porque estávamos no centro das nossas atenções, tudo que não fosse eterno ficava no lado de fora, e não havia nada que quebrasse esse encanto, e não havia nada além desse encanto.
A tua lembrança é uma água viva que arde em meus olhos, solfeja no ouvido, convida a dançar. A tua lembrança me rodopia, gira e gira, brinca comigo e some no ar...

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quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

Recomeços


A minha melhor parte reparte-se em vontades inacabadas, interrompidas, amontoadas, quase esquecidas. Os meus recomeços, eu reconheço, nunca tem fim. Porque são pedaços de mim que flutuam acima das horas, pairam feito poeira sem peso e brilham quando um facho qualquer de luz entra sem pedir licença pela casa que habito. A casa onde distraio o tempo com gestos imprecisos, disfarçados pela nudez das palavras lentas e repetidas no canto da boca. A minha parte que não distingue o grito, é sussurro lenitivo, é sentido de cor e de risco, é de natureza morta que pulsa e por dentro o corpo se agita, é olhar estendido sobre a ressaca de um mar magoado pelo vento. Acenos de luz e sombra pelas paredes que abraçam o corpo dentro do corpo que abraço... habito a casa que respira o ar feito de água e areia, poeiras e penas, gotas de minutos serenos, pequenas contas de um colar partido, corais vazios, reminiscências.
A minha melhor parte é ter paciência, porque reconheço: os meus começos nunca têm fim.

imagem: desenho de Cristina Nunes
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sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

Espuma

Uma onda se quebra espuma na pedra
braço de um corpo obscuro
numa força serena que tudo leva...
e leva meu corpo leve e me leva
resvalo na certeza que resta
tudo passa
tudo caminha sobre uma linha
horizonte fugaz...
fica prá trás uma nuvem de fumaça
desenhando rolos de música e vento
meu pensamento no escuro
sente a vertigem do esquecimento
apaga no tempo meu risco de giz
desenho feito com esmero
destino aprendiz...
nada mais além da espuma na pedra
dos meus olhos vendados
a flor do sonho na boca
enquanto a noite aderna
com seus navios e velas...

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domingo, 18 de janeiro de 2009

Os sinos

Não há o que esperar, nem ao menos o despertar dos sinos.
Apesar da festa das asas em torno da igreja. Parece uma celebração, um ritual de vida, alguma coisa que só a natureza explica. Eles vão e vem num trajeto que vai das árvores ao adro, das árvores às torres, das árvores aos vitrais... e são tantos que podia jurar que a levariam pelos bicos céu afora, fosse ela leve, feita de açúcar ou nuvem, mas é feita de pedra, feita de brita, bem fincada na terra... podia jurar que a vi levitar. Porém nada acontece além da cena dos pássaros bicando, de quando em quando, a face da igreja.
O que eles não sabem é da sua face, nem das suas fases de olhar prá igreja com os pássaros em volta se alimentando dela e construindo seus ninhos.
Se pudesse faria um ninho no alto da torre... se soubesse.
Mas não pode porque suas mãos se ocupam em tecer os fios dos seus vestidos, apenas seus olhos sabem bordar os ninhos, seus olhos de beijar flores, de voar alto por sobre a cidade deserta que mais parece um cenário vazio onde personagens descansam à espera do terceiro sino, terceiro chamado, o abrir das cortinas.
Quase amanhece em torno da igreja. Podia jurar que ouvi os sinos.
Podia jurar que do alto da torre alguém acenava sorrindo...

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Santuário

"...não se afobe não, que nada é prá já, o amor não tem pressa, ele pode esperar em silêncio..."
Chico Buarque

***

Fugir talvez fosse uma solução.
Um caminho a se consumir... a lhe consumir... sumir no ar sem nenhuma explicação...
A porta aberta seria a chave prá que entrassem na casa procurando por ela... e ela por onde andaria?
Seus armários vasculhados pelos escafandristas explorando seu quarto,
suas coisas,
sua alma,
desvãos...
A cidade então submersa era o mundo que havia escapado de suas mãos.
O amor sem pressa mergulhado no silêncio,
num fundo de armário,
na posta-restante,
poemas,
mentiras,
retratos...
O amor sem pressa guardando o seu santuário.
Um dia quem sabe, de volta a essa estranha civilização ela então amaria esse amor amável, sem nenhuma afobação. Mas um desejo maior que a razão abduzira seu corpo e a fizera cair em tentação, ela caía do mundo e o mundo caía das suas mãos. Uma força contínua a levava de encontro à saída, ao universo de uma ilusão que corava sua face enquanto o sangue lhe fugia, seu vestido branco cortado em tiras, atirados no espaço refletindo as cores do seu arco-íris, a sorte ao léu, os braços abertos, o equilíbrio num puro sacrifício...
de encontro ao sol
de encontro ao sol
de encontro ao sol...

imagem: fotografia de Greg Gorman
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quinta-feira, 20 de novembro de 2008

Parapeito

Esqueci as horas e fui contar as estrelas
uma por uma, até passar toda a tristeza.
Ficou com um brilho no ar e uma lágrima presa.
A vida é tão frágil quando me apoio no parapeito.
Olho prá rua, cravo meus pés no chão e abro meu peito.
É quando ela entra e se aboleta, feito borboleta
bate suas asas e me espalha de cores por dentro
e vai procurando um lugar prá pousar
pelos meus cantos canteiros, meus delírios viveiros
bebe da minha água riacho doce correnteza
se alimenta da minha calma e me faz inquieta
quando nas minhas falésias sonha alto
se arrisca no salto e plana gaivota branca
menina mar, moça oceano, mulher terra
contando as estrelas na solidão da janela.

imagem: desenho de Cristina Nunes
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