domingo, 9 de março de 2008

Um livro chamado Criatividades

Era um livro meio caderno, um caderno meio livro, era feito de páginas que se alternavam entre poemas e folhas em branco. Na direita os poemas nas páginas coloridas, na esquerda as páginas brancas. Era feito de estímulos, provocava e intimidava. Como diria Adélia Prado: espicaçava. O título: Criatividades. O objetivo era esse mesmo, cutucar a criatividade dos alunos. Não me recordo em que série eu estava quando nas aulas de literatura o conheci, mas me recordo bem do que senti ao ler “Poema em linha reta”. Foi como se eu derrapasse e enquanto lia nada mais em volta acontecia. Parei na folha ao lado, em branco, extasiada. Por essa época eu já estava seduzida pela poesia de Vinícius, lia suas crônicas e ouvia muita música. Os amigos curtiam Led Zeppelin, Bob Dylan e Janis Joplin enquanto eu ouvia... “Paris outono de 73, estou no nosso bar mais uma vez...” em que bar eu estava? Em que ano eu estava? Pelo 73 suponho que por volta dos 74, nos meus 16, 17 anos. Acho que foi quando comecei a escrever alguma coisa. À princípio transcrevia para o branco das páginas os poemas e as letras de Vinícius: “...São demais os perigos desta vida... principalmente quando uma lua chega de repente...”. A lua. Eu, que já olhava prá ela, passei a encará-la com olhares de espelho. Arriscava, então, meus versos à lápis tímida comigo mesma e, envergonhada com o que escrevia, apagava. Mas Criatividades exigia alguma coisa dos alunos e, para não deixar pistas, eu desenhava por cima das marcas do que não sei se era poesia. O ano letivo terminou com o livro todo marcado por rabiscos. Passei a escrever em papéis soltos que eu guardava, bem dobrados, numa caixa de sabonetes que eu mantinha escondida no armário. Não sei o que aconteceu com o livro, provavelmente se perdeu nas tantas mudanças de casa, mas a caixa de sabonetes, na primeira oportunidade, joguei fora com tudo dentro. E nessas tantas mudanças acabei me perdendo, e perdendo também o costume de encarar a lua, porém nunca deixei de encarar o espelho procurando por ela. Até o dia em que, anos depois, me vi com aquele livro velho, sem capa e com as páginas espessas. Era um livro de poemas de Fernando Pessoa, na pessoa de Álvaro de Campos, que minha irmã havia esquecido comigo numa das suas mudanças. De novo derrapei no poema em linha reta e parei na porta de uma tabacaria, extasiada imaginando o céu de Lisboa. Uma lua surgiu de repente quando Criatividades emergiu na lembrança me espicaçando. Voltei a escrever e, apesar dos perigos, nunca mais apaguei nem um traço.

Um comentário:

( Syl ) Sylmar Signoretti disse...

Querida Cris,
Sua sensibilidade sempre fala alto em meu coração, ao ler este texto foi impossivel não verter lágrimas de saudade dos meus pais. Falar em Vinícius é pra mim uma nostalgia que dói. Vc sabe como amo toda a obra do nosso poetinha, essa música é a saudade maior...
Você escreve cada dia melhor, se supera e encanta.
Mil beijos da amiga que te adora.