terça-feira, 9 de junho de 2009

A hora da novela


Passando as mãos pelos quadris ela estica um pouco o pano. A cabeça inclinada pro lado e três passos prá trás. Acho que ficou bom. Não. Não ficou bom. Frente ao espelho nunca nada está, satisfatoriamente, bom. Se ao menos estivesse chovendo. Uma capa de chuva a deixaria elegante. Européia!
Lembrou do avião que atravessou o céu rasgando o silêncio da tarde. A essa hora já deve ter pousado em seu destino os vários destinos. Vontade de dizer que contigo iria prá Hungria, Nova Zelândia, Papua Guiné. Prá qualquer lugar e depois voltar um pouco mais tua, um pouco mais meu, ou quem sabe com um pouco de nós... Sonhar é bom, mas causa muita confusão nos espelhos de corpo inteiro.
O vestido não caiu bem, falta carne aqui, falta tecido ali e esse calor é um inferno. Procura outro mais solto, e entre um vestido e outro se vê nua num quarto com as janelas abertas. Será que ele me vê? Pois que veja e justifique esse corpo resistindo entre um vestido e outro. Até inventa um olhar fingidor num véu com transparências noturnas. Se ele a visse, ela não estaria com os olhos fechados prá se ver mais bonita, os lábios se movendo revirando palavras soltas como asas de borboleta. Ela estaria com os olhos bem abertos ansiosos em ver tua boca curiosa. Talvez te falasse coisas que quando ditas em determinados momentos se tornam especiais. Mas nem tudo ela diz, guarda sempre algo prá depois, deixando no ar um ponto de espera. Por isso esse ar tão denso, esse sorriso rápido. Quem quiser vê-la sorrindo tem que estar atento. Será que ele está atento? Será que vê a carne branca onde o sol não alcança? Será que percebe que assim viajante ela fica mais bonita?
Abre os olhos e o que reflete no espelho vai além da pele, dos pelos, dos poros.
Ela finge que se entende, finge que segura as pontas, mas quando as solta ela sobe e sobe e sobe e então...
Uma trovoada arrasta o céu prá longe.
Desiste dos vestidos e veste a camisola de algodão. Na janela confere o tempo, parece que vai chover. Deitada na cama liga a televisão prá assistir a novela. A capa de chuva deixaria atraente a pele nua. Mas o calor está mesmo o inferno. Quantas borboletas engoli? A tua boca deve ter gosto de Amaretto. Se ao menos sonhasse contigo. Papua Guiné fica onde mesmo? ...
No alto da noite um avião risca no céu outros destinos.

imagem: desenho de Cristina Nunes
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